quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

São Tomé na América


DURANTE UMA VIAGEM A Jerusalém, um jovem comerciante grego conhece os apóstolos de Cristo e com eles participa do misterioso episódio da véspera de Pentecostes, quando o lugar onde estavam foi invadido por “línguas repartidas de fogo” e todos foram tocados pela luz do Espírito Santo “e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem.”
   Este é o ponto de partida de São Tomé na América, uma comédia-épica que narra a obviamente malfadada, repleta de mal-entendidos, mas nem por isso menos hilária missão de um apóstolo improvisado pelas Américas do primeiro século de nossa era.
   Ambientado em um continente já há muito perdido, em um tempo em que os homens ainda eram deuses e havia gigantes sobre a face da terra o romance dá conta das viagens de Polícrates de Naxos,que durante catorze anos peregrinou pelo continente americano, pregando a palavra do Senhor para jês, guaranis, tiahuanacos, paracas, mochicas, quichés, pós-olmecas, zapotecas e teotihuacanos, culminando em uma eletrizante, embora mortal, partida de pocolpoc — espécie de futebol jogado pelos antigos povos da América Central — na cidade de Teotihuacán, onde estarão em jogo não apenas a vida do protagonista como também o florescimento ou o extermínio de uma grande civilização.
   É ler para crer. 

Graça e ironia

Por Ivan junqueira

A QUEM PODERIA OCORRER, NOS extertores do segundo milênio, contar as memórias de um pobre diabo de garrafa chamado Giacomo Lorenzo Bembo, “fluente em cento e doze línguas conhecidas” e outras tantas que os paleógrafos “não conseguiram classificar”, que foi exconjurado nas ruínas do Coliseu romano, na madrugada de 31 de outubro de 1526, pelo escultor e ourives florentino Benvenuto Cellini? Pois a insólita e desconcertante idéia aflorou na imaginação do escritor brasileiro Alexandre Raposo, ganhador de uma das três bolsas que a Biblioteca Nacional instituiu em fins de 1997 para romances em andamento.
   Pois esse fabuloso diabo de garrafa, com sua fina ironia e sua descomunal cultura em vários ramos do saber, passou de mão em mão — além das de Cellini,  pelas do embarcadiço português Nuno da Silva, do frade dominicano Soares Gaillán, do compositor e virtuose italiano Niccolò Paganini e do estudante de arqueologia brasileiro José Afonso Gonçalves — até tornar-se propriedade da família a que pertence quem lhe narra estas esticadas memórias de quase quinhentos anos.
   O que de pronto encanta e surpreende em Memórias de um diabo de garrafa é, acima de tudo, o absoluto domínio que revela o autor não só de nossa língua e de suas mais caras tradições, mas também da agílima linguagem ficcional de que se vale. Essas memórias seculares nos são contadas com graça e ironia inexcedíveis, fazendo assim de sua leitura um deleite a que decerto não está habituado o leitor brasileiro.
   As mais bizarras peripécias da espantosa criatura — não fora ele um vetusto diabo de garrafa — nos aliciam com uma  estranha variedade mercê do estilo culto e elegante de que se serve Raposo, o que galvaniza o leitor e fá-lo não renunciar por um só instante àquilo que eu diria aqui constituir mais do que aquele barthesiano “plaisir du texte”, a degustação de um vinho velho, raro e inebriante. Não cumpre antecipar nestas orelhas, as quais o leitor deve fazer ouvido moucos, quaisquer daquelas peripécias, já que estão todas como que visceralmente entranhadas na arte narrativa de quem as relata. E esse mesmo leitor, se sábio for, que vá a texto já e já, e não o largue da primeira até a última linha. Se assim o fizer, entenderá do que lhe falo. E por que aqui o exalto.

Sobre Éden 4

Por José Mindlin

COMENTAR UMA OBRA DE Alexandre Raposo é um encargo muito atraente pois ele é um autor jovem que vem se destacando no panorama literário brasileiro. Seus dois primeiros livros — Inca e Memórias de um diabo de garrafa — revelam um apreciável talento em lidar com o romance histórico, ou com o que se poderia classificar de história romanceada, tal a semelhança com os fatos históricos que consegue dar a seus textos, frutos de muita pesquisa e de óbvia erudição. Alexandre Raposo escreve de forma extremamente agradável, entremeando a narrativa com muito humor, o que torna ainda mais prazeirosa a sua leitura.
   Antes de se tornar escritor foi, por vários anos, jornalista — uma excelente escola — mas em dado momento, como acontece com muitos de nós, sentiu a necessidade de optar entre o jornalismo e outra profissão — no caso, a literatura. Optou por esta, preparou-se durante vários anos, e os livros que publicou mostram que a escolha foi realmente acertada.
   Enquanto trabalha em novo romance, parece que resolveu testar sua versatilidade, enveredando pelo terreno do conto. Não foi, aliás, uma decisão surpreendente, pois a safra de contos publicados nos últimos anos é bem considerável e demonstra a popularidade que o gênero alcançou. A preferência do público poderia ser atribuída a uma aparente maior facilidade de leitura, e até mesmo de elaboração do conto, no ritmo apressado da vida de todos nós. Não que ler ou mesmo escrever um conto seja necessariamente mais fácil do que ler ou escrever um romance — muitas vezes, é o contrário que acontece. Nem significa que a preferência por um gênero exclua o outro, tanto que muitos grandes escreitores se dedicaram com sucesso a ambos. Lembremos, Machado de Assis, Somerset Maugham ou Guimarães Rosa.
   Não creio que exista, aliás, um critério para se determinar o que é melhor, se o conto ou o romance. De meu lado, gosto das duas coisas e acho que a aventura tentada por Alexandre Raposo é perfeitamente válida. Provavelmente quis ver como seria escrever textos que não exigissem um trabalho exaustivo de pesquisa, simplesmente dando largas à imaginação. Tinha todo direito de fazer essa experiência e este livro mostra que se saiu bem. Os contos são interessantes, alguns deles excelentes. Basta ler, por exemplo, “O Peixe-Rei”, “Succubus”, “A onda”, “A cerveja em três tempos” ou “Entrevista com um alienígena”.
   O curioso é que, nos contos, além do escritor, voltou a aparecer o jornalista, pois o tom da narrativa freqüentemente assume características de uma boa reportagem. Isso não é defeito, mas levado ao extremo poderia signficar um afastamento da literatura, tal como de modo geral a entendemos. Felizmente, não é o caso. Acho que, como disse, a experiência foi válida e o livro merece ser lido.
  Alexandre Raposo, que já era um bom romancista, revelou-se um bom contista. De sua pena, podemos esperar grandes coisas.

História e fantasia nos Andes

Luiz Antônio Aguiar
para o JORNAL DO BRASIL


EM SUA NOTA INTRODUTÓRIA, Ale­xandre Raposo, situa-se:. “...o ro­mance literário é um tipo de mentira sofisticada, perpetrada com o con­sentimento de quem o lê”. E a epí­grafe que apadrinha o Livro 1 do ro­mance amplia essa noção: “É preci­so saber ignorar”. A começar pela epígrafe; sim, saber ignorar é preci­so; é preciso possuir certa sabedoria para ignorar, para ser capaz de igno­rar bem, de modo fértil; para tomar a ignorância, ou aquilo que não se sabe, em conhecimento-outro da realidade: da história, no caso, um conhecimento que ultrapasse fatos e fontes: a ficção. Os simulacros, as verossimilhanças, a arte do fazer pa­recer possível, prestidigitação, con­hecimento. Inca, de Alexandre Ra­poso, exerce essa arte com exu­berância e emoção.
   Parte substancial do romance consiste no relato de Lloque, o amauta-sábio, conselheiro, fonte confiável para que se desfaçam enigmas antropológicos e arqueoló­gicos sobre os incas, já que Lloque foi figura de destaque da corte de Cuzco, do apogeu do Império até a execução de Atahualpa, que deflagra um declínio vertiginoso da civiliza­ção andina.
   No entanto, a existência predesti­nada de Lloque inicia-se na ilha da Páscoa — teria nascido, exatamente (embora não se registrassem datas à moda cristã, como de resto, talvez, de nenhuma outra maneira, entre os tamines) a 12 de outubro de 1464. Seu pai era um guerreiro tamine, descendente dos habitantes mais an­tigos da ilha, talvez os mesmos que erigiram as famosas estátuas. Sua pequena família constituía-se nos únicos sobreviventes da raça. Nessa época, Páscoa já haveria sofrido um surto migratório, vindo da Polinésia. Canibais, pouco se importan­do com a imponência das estátuas espalhadas pela ilha, os polinésios viam os tamines como caça, nada mais. Uru, pai de Lloque, guardião de fantástica coleção de tábuas onde se achavam registradas as lendas e a cosmologia tamine, sabe, pela escri­tura das tábuas, que há um continen­te distante a ser alcançado, atraves­sando o mar — empreitada insana, mas que alternativa tinham?
   As tábuas contavam que os tami­nes seriam descendentes do Povo do Sol, ao qual se reuniriam, algum dia, quando retomassem ao continente. Em contrapartida, entre os incas, corria uma profecia que anunciava, também para algum dia futuro, a chegada de descendentes do povo ancestral — esse evento marcaria o início da ascensão da civilização in­ca, o período das conquistas, das invasões, da prosperidade, da riqueza e da glória, da formação do Império.
   Lloque chega a Cuzco ainda be­bê de colo. E somos conduzidos através da narrativa pelo seu relato nostálgico, dolorido, aos 77 anos, já em plena dominação espanhola. Cientes de que o Império viverá também sua decadência, sua penúria, e que seremos inevitavelmente levados a acompanhá-la, nós, que fôramos seduzidos a admirar, a tor­cer pelos incas, a apreciar seu refi­namento exótico, e mesmo a tolerar as atrocidades que (também) come­tiam, somos contaminados pela mesma compaixão com que Llo­que, testemunhando o presente, desvela o passado. A nós, latinos modernos, foi deixada uma história do Império baseada nos brutamon­tes assaltantes de Pizarro, no que se depreende de ruínas etc... Lloque, que viu as fundações daquelas construções serem escavadas, como símbolo de grandeza emergente, não esconde, nem procura fazê-lo, seu lamento, a cada linha, pelo des­fecho que já conhece, que não po­derá evitar, mesmo em suas memó­rias, mesmo em seu relato. O efeito desse olhar desolado do narrador, mesmo nos momentos mais pujan­tes, é o que nos comove.
   Raposo usa a ironia em boa me­dida, e mesmo a gozação, toda vez que seu texto constrói uma verossi­milhança tão poderosa que corre o risco de ser desfigurada como ver­dade. E, com bom toque, vale-se de um tratamento de linguagem efi­ciente — sem firulas —, mais do que apropriado para o contexto em questão. O autor, estreante, reali­zou extensa pesquisa, visitou os lo­cais que lhe servem de ambienta­ção, exauriu amigos, compelidos a conviver com algum obcecado, ha­via anos, pelos incas. Como resul­tado, talvez cumpra a ameaça ou promessa — de sua nota introdutó­ria, despertando a imaginação dos leitores para a possibilidade de a realidade “ter sido ainda mais ina­creditável”. No entanto, Inca, na prática, renega tal princípio, mes­mo que, de início, tenha lhe servido de álibi. O que fica da leitura é a sensação de que realidade nenhuma pode demonstrar-se — ou compro­var-se — crível, sem o poder, a ma­gia e a comoção que lhe é conferi­da por aquele que a narra.
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Luiz Antônio Aguiar é escritor

Simpatia pelo demônio

Roberto Muggiati
para a MANCHETE

ALEXANDRE RAPOSO ESTREOU na ficção com um romance histórico sobre a saga dos Incas. Agora, com Memórias de um diabo de garrafa, ele se solta mais e faz uma fusão de ficção e história, elegendo como narrador um diabo que atravessa 500 anos sem jamais ter saido de uma garrafa de pouco mais de meio litro de capacidade. O lançamento do livro coincidiu com a recente nova investida da Igreja Católica contra o demônio, que culminou com a divul­gação, pelo Vaticano, do seu novo manual de exorcismo, De exorcismis et supplication­ibusquibusdam. O livro de Ra­poso não trata do Maligno, primeiro e único, mas de um aparentemente inofensivo diabo de garrafa (entidade muito próxima ao gênio da lâmpada) que vai mudando de mãos ao longo dos séculos. (Raposo não é roqueiro, mas sua história lembra um pouco a letra de Sympathy for the Devil, dos Stones, que fala de um demônio que participou da agonia dé Cristo, da morte dos Romanov na Re­volução Russa, do assassinato dos Kennedy.)
   A saga do bichinho da garrafa é um pretexto para traçar perfis de curiosas figuras históri­cas, desde o artista florentino Benvenuto Celli­ni, que conjurou o diabo numa madrugada de 1526 nas ruínas do Coliseu romano, até — pas­sando pelo navegante português Nuno da Silva, pelo frade domini­cano Suarez Gavillán e pelo virtu­ose do violino Paganini — o arqueólogo brasileiro José Afonso Gonçalves e seus herdeiros, aos quais foi legada a garrafa com o seu tripulante intacto.
   Ao final, uma reflexão, ho­nesta, do diabo de Raposo: “Os quase cinco séculos que vivi não me habilitaram a chegar a qual­quer conclusão a respeito da condição humana, do sentido da vida, de onde viemos, para onde vamos etc. etc. etc.
   O livro termina com uma Re­ceita para se conjurar um diabo dentro de uma garrafa e mantê-lo ali per saecula saeculorum (Versão tropical atualizada). Quem quer tentar? Segundo Ra­poso, “se tudo correu como o espetado, há chances de você ser o feliz proprietário de um diabo de garrafa como eu”.
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Roberto Muggiati é escritor e jornalista.

Um diabo sábio, com muitas histórias para contar

Elias Fajardo
para O GLOBO 

UMA BOA IDÉIA NÃO É im­prescindível para escre­ver um bom romance. Mas ajuda bastante. O li­vro de Alexandre Raposo parte de uma idéia central estimulante: um diabo atravessa os séculos preso num recipiente de cristal e convive com figuras representati­vas de vários períodos históri­cos: o escultor Benvenuto Cellini, que o conjurou (termo técnico que significa dar nascimento a um ser diabólico) na Renascença; um navegador português que, em pleno século XVI — a era das grandes viagens marítimas ibéri­cas — servia-se dos conselhos do pequeno capeta para iludir pira­tas e acumular tesouros; o virtuo­se e compositor Paganini que, no século XIX, usava o poder de um dos quatro cérebros do diabo pa­ra planejar excursões e escolher seu repertório.
   Giacomo, o prisioneiro da gar­rafa, não é um diabo no sentido católico do termo, mas no senti­do clássico, socrático, ou seja, um espírito não necessariamente mau, capaz de inspirar os ho­mens nos momentos de aperto. Vive no vácuo, tem poderes tele­páticos e habilidades como ficar invisível ou viajar para fora do corpo. E, mais do que isto, é um erudito, interessado na ciência e no conhecimento. Num dos capí­tulos mais interessantes, Giaco­mo passa séculos trancado na Bi­blioteca do Vaticano tendo como companhia um diabo de garrafa assírio com 2,5 mil anos de idade. Os diálogos entre os dois são de­lícias de humor e ironia.
   Em tempos em que os homens se matam, se roubam, se atrai­çoam e se apedrejam por motivos às vezes triviais, a ética dos dia­bos de garrafa está mais próxima do bem do que do mal.
    Mas Giacomo não era exata­mente uma flor que se cheire. Sem culpas, era capaz de espertezas e baixarias e rezava pela cartilha: para os amigos tudo, aos inimigos nada. Seu maior inimigo, no entan­to, era o obscurantismo, que le­vou, por exemplo, Paganini a se recusar a usar um remédio reco­mendado por Giacomo. Afinal, um cristão não poderia ser curado pe­lo seu demo de estimação! O re­médio era o mesmo que Giacomo usou para curar uma sífilis em Cel­lini: o mofo que nascia sobre os queijos, princípio que mais tarde daria origem à penicilina.
   Demonologias à parte, Giaco­mo é um recurso que o autor usou para narrar sua história. Sem o endiabrado habitante da garrafa de cristal, as biografias das ilustres figuras citadas no li­vro talvez ficassem bem menos interessantes. E aí entra o segun­do elemento importante num ro­mance (sobretudo histórico): a pesquisa. Ela deve ser aprofunda­da o bastante para dar ao autor intimidade com o assunto e a época tratados, mas não imobilizante nem pesada, pois pode tor­nar árido o texto e diminuir o in­teresse em torno dele. O escritor e jornalista Alexandre Raposo pesquisou muito. Mas conservou a verve e o humor, o que é bom para seus personagens e também para o seu público.
   Em alguns momentos, peque­nos cochilos, perfeitamente evi­táveis. A certa altura, Giacomo louva um piloto brasileiro que ga­nhou seu primeiro título mundial no Japão. E cujo sobrenome era Da Silva. Ora, sem mencionar ex­plicitamente que foi Ayrton Sen­na, nem todo mundo vai adivi­nhar o nome do piloto.
   No final do romance, os leito­res vão encontrar uma receita de­talhadíssima com os ingredientes e o que é preciso fazer para con­jurar um demônio de garrafa.
   Quem se habilita?

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Elias Fajardo é jornalista e escritor.

A originalidade como trunfo

Duílio Gomes
para O ESTADO DE MINAS

SAUDADO PELA CRÍTICA COMO um dos mais originais romances brasileiros dos últimos anos, Memórias de um diabo de garrafa, de Alexandre Raposo faz jus à classificação e começa a chamar a atenção também dos leitores. Para lvan Junqueira, mais do que a originalidade do enredo, o forte do livro é o absoluto domínio da língua exibido pelo autor, um jornalista carioca que já publicou um outro romance fora dos “pa­drões canônicos” da moderna ficção brasileira, in­titulado Inca: a Saga da América Pré-Colombia­na.
   Excêntrico e exótico, o diabo criado por Ale­xandre Raposo tem quase 500 anos de existência e foi conjurado pelo artista florentino Benvenuto Cellini em uma madrugada de 1526 nas ruínas do Coliseu romano. Seu nome é Giacomo Lorenzo Bembo e ele mede 20 centímetros, do chifre à ponta da cauda. Pode ser confundido, à distância, com um réptil no formol, já que seu corpo é todo revestido por escamas, com os dedos das mãos e dos pés unidos por finas membranas. Dentro de sua garrafa, ele dá a impressão de ser um tiranos­sauro em miniatura. Possui um único chifre, descreve o autor com maiores detalhes, em ver­dade uma crista cartilaginosa no topo da cabeça que ele usou uma única vez para romper a casca do ovo onde foi gerado. A cauda é semelhante à de uma iguana e culmina em um ferrão curvo, ab­solutamente inofensivo.”
   Na verdade, o diabo Bembo é mais inofensivo do que aparenta. Poliglota, inteligentíssimo e beirando a sapiência, suas pequenas crueldades não vêem de sua natureza diabólica, mas foram apren­didas em sua convivência com os humanos. Bem­bo, o diabo, sabe 112 línguas conhecidas e outras tantas que nem mesmo os paleógrafos podem clas­sificar. Seu português tem um leve acento lusitano e seu inglês e arcaico, beirando o saxônico.
   As epígrafes de cada capítulo revelam a erudição do autor (ou seria do diabo-personagem?: versos originais de Dante para a parte do Inferno em sua “Divina Comédia”, dois versos (em grego) de Sófocles, o ditado predileto de Liszt (“Génie Oblige”, no lugar de “Noblesse Oblige”) e uma fra­se de Guimarães Rosa: “Sem terra nem haste, co­mo as borboletas”.

Ouro em pó
Giacomo Lorenzo Bembo não apresenta nenhum tique dos capetas conhecidos pelos cristãos — não fede a enxofre, não gargalha diabolicamente e não fica ameaçando as pessoas com seu tri­dente vermelho. Ele simplesmente não traz tri­dente a tiracolo. Fugindo do estereótipo. Bembo é desprovido de “qualidades” tinhosas mas exibe, por outro lado, uma ironia tão sibilina que enche­ria de orgulho os seus pares nas profundezas fer­ventes de sua nação.
Quando pertencia ao escultor Cellini, o diabo Bembo leu a Bíblia pela primeira vez. Descobriu imprecisões e erros crassos na versão italiana, an­terior à “Vulgata Editio”, do Concílio de Trento. Certa vez, quando um religioso do século XVII ou­viu sua voz, percebeu de quem se tratava e gritou em latim: “Apage Satanas”. Bembo respondeu, também em latim: “Fronti nula di fides...” O religioso, inseguro, perguntou: “Cristiani?” ao que o diabo respondeu, mentindo diabolicamente: “A capite ad calcem”.
   Depois de Benvenuto Cellini, Bembo perten­ceu ao violinista virtuose Paganini, a um frade dominicano (que queria saber dele o que achava de Jesus Cristo, obtendo, como resposta “Buda faz mais o meu tipo”), a Francis Drake, ao em­barcadiço português Nuno da Silva, com o qual veio em caravela para o Brasil no século XVI e ao estudante de arqueologia brasileiro José Afonso Gonçalves. O fato de estar no Brasil, en­garrafado, pode explicar alguns non senses e atos diabólicos aos quais o povo está, há séculos, acostumado.

Um pé no mundo real, outro no mundo das luas

Nelson Vasconcelos
para O GLOBO

À PRIMEIRA VISTA É QUASE um paraíso. Imagine que o comandante Dar­do Basadra, astronauta do século XX, sofre um aciden­te numa aterrissagem desas­trada, passa uns 13 mil anos dormindo e, quando acorda, a Terra está habitada por dois bilhões de mulheres e ele, so­mente ele, a representar o sexo masculino. Os outros machos — que quase destruíram o pla­neta — sumiram do mapa há 12 séculos. Mas, por pura in­competência da engenharia genética, as sucessivas clona­gens de mulheres estão, por assim dizer, produzindo espé­cimes de qualidade inferior. E cabe a Basadra, portanto, for­necer sêmen para a perpetua­ção da humanidade.
   Entretanto, com Basadra preso e disputado por grupos inimigos de mulheres histéri­cas, a história muda. Ou reco­meça. Daí em diante, bem, há que se ler “Éden 4”. Não dói. Como nos outros livros de Ale­xandre Raposo, a narrativa desce como um bom chope, e chegar ao fim da dose é inevi­tável. Várias doses, neste ca­so, pois agora Raposo apre­senta uma coletânea de 15 contos fantásticos. Sempre — e ainda bem — com humor.
   Como em seus dois roman­ces anteriores, Raposo mostra que co­nhece a manha de contar uma história, curta ou não. Se os romances ganhavam corpo à medida que o enredo se impunha, os contos ga­nham o leitor logo de imedia­to. Não seria essa uma das ca­racterísticas do bom conto?
   Mais que isso, Raposo se sente bem à vontade na hora de criar situações (aparente­mente) absurdas ou (por en­quanto) impossíveis e apresen­tá-las sem preocupação com propostas estéticas ou teóricas intrincadas, camuflando sub-textos e outras coisas do gêne­ro, que em geral interessam a muito poucos leitores qualificados. É nítido que Raposo es­creve seus textos para se en­treter com as palavras, e quer que seus leitores façam o mes­mo. Consegue, sem dúvida.
   Os contos curtos dão bons exemplos de como Raposo mantém um pé no cotidiano e outro sabe-se-lá-onde. Em “De olhos bem abertos”, por exem­plo, o mote é a ligação miste­riosa entre um seqüestrado na Baixada Fluminense e um me­nino doente das idéias, que ajuda a libertar a vítima. Intri­gante, assim como “Justiça”, desaconselhável para estôma­gos mais fracos. E “Ambulan­te” dá uma versão bem plausí­vel do futuro daqueles sujeitos simpáticos que entram em ônibus para vender balas.
   Talvez distraidamente, al­guns contos escondem algu­ma poesia, alguma melancolia, quando abordam a solidão, a morte, a saudade. Mas sem frescura. Em “Ano-bom”, um busca-pé tagarela invade o apartamento de uma senhora viúva para salvá-la da morte. Na verdade, é seu marido, morto há alguns anos, que vai levá-la de vez para outro mun­do. “Succubus”, “A onda” e “O Peixe-Rei” também merecem a atenção do leitor, sem favor al­gum.

O fantástico como puro divertimento

Luiz Antonio Aguiar
para o JORNAL DO BRASIL

EM SEU ENSAIO Por uma lite­ratura brasileira de entreteni­mento (ou o mordomo não é o único culpado), José Paulo Paes defende que nenhum sistema li­terário estará consolidado sem que, ao lado do que chama de literatura de proposta, ou litera­tura erudita, exista uma podero­sa literatura de entretenimento. O próprio Paes nos sugere pis­tas do que seria esse segmento literário, citando Umberto Eco, ao caracterizar os escritores dessa estirpe como “honestos e competentes artesãos que (...) não pretendem mais do que su­prir as necessidades do consu­midor médio (...) que no fim de um dia de trabalho pede a um livro ou a uma película o estí­mulo de alguns efeitos funda­mentais (o arrepio, a risada, o patético) para restabelecer o equilíbrio da sua vida física ou intelectual”.
   Mas são essas, justamente, as qualidades procuradas pelo leitor leigo no livro que toma para ler antes de dormir, ou du­rante uma viagem de avião, ou num fim de semana em que possa realmente tirar algumas horas de folga. Ou seja, um li­vro para ser lido naquelas horas mortas de tédio.
   O leitor leigo busca seu cor­respondente, um escritor capaz de manipular efeitos de leitura, e também um escritor-cúmplice que impregne o texto de refe­rências familiares — procura um interlocutor, alguém que com­partilhe de boa vontade do mes­mo ambiente cultural do leitor, não acima nem de fora, a lhe instruir sobre juízo estético ou a tentar extraí-lo do seu habitat.

Fantástico — Nesse rol, se encaixa Alexandre Raposo com seu Éden 4, uma coletânea de 15 contos que exploram o fan­tástico, de densidades diferen­tes, mas alguns originais e ab­solutamente cativantes, e todos com um final surpreendente, um gran finale, ao estilo dos contistas mais vigorosos da es­cola tradicional do gênero. E ainda, segundo o autor, sua “resposta a uma infância reple­ta de literatura gótica, quadri­nhos de terror, filmes de ficção científica e séries de tevê como Além da imaginação, Quinta dimensão, Os invasores etc.”.
   A habilidade de Raposo para a construção de boas histórias e bons personagens — a marca do ficcionista — ficou demonstrada em seus livros anteriores. Em 97, o escritor estreou com Inca, um verdadeiro espetáculo de construção ficcional sobre refe­rências históricas. O protago­nista é um personagem que, vindo da Ilha da Páscoa ainda bebê, chega a escriba e conse­lheiro do império andino, teste­munhando seu apogeu e sua derrocada. Depois, tivemos Memórias de um diabo de gar­rafa, uma novela em que um pequeno diabo, gerado dentro de uma garrafa, na qual vive há séculos — estando agora em seus estertores —, narra sua tra­jetória divertidíssima.
   A leitura de Eden 4 mostra que o livro foi feito para quem o fantástico não se contrapõe como antimatéria à realidade, como reflexão desconstrucio­nista; é entretenimento; e há re­gras que determinam a compe­tência, ou não, da investida nes­te segmento cultural-literário.

Código — Por exemplo, existe todo um código de troca de senhas e de acordos tácitos com o leitor, para que a fantasia não descambe para o desvario, o surreal — é preciso haver uma verossimilhança, uma coerência interna nos limites do jogo, dis­postos desde o início. Nada de tudo pode acontecer. Outra re­gra, aliás, correlacionada à pri­meira: o autor deve situar-se em relação às referências comuns da tribo, o que ela aceita, reco­nhece, até onde ela vai e conce­de, até onde flexibiliza as fron­teiras do espaço final e do des­conhecido que outros já demar­caram. Pode distendê-las, alte­rá-las, renová-las, mas não des­conhecê-las.
   Éden 4 contempla com perí­cia o exigente leitor-afeito/a­berto-ao-fantástico e lhe ofere­ce um cardápio que vai da fábu­la ao pastiche do mito da cria­ção do universo, um must recor­rente das histórias fantásticas. “O Peixe-Rei” é uma fábula; um peixe, senhor dos mares, de existência imemorial, com ca­pacidade de oferecer qualquer recompensa, ao menino que o encontra aprisionado numa po­ça que a ressaca formara entre as pedras e a areia. As expecta­tivas e evocações — de outras histórias, desde as Mil e uma noites — levantadas aqui serão corroídas pelo cinismo (uma idiossincrasia do escritor desde o seu primeiro romance). E também puro cinismo “Corren­te”, em que se apresentam os Missivistas da Boa Ventura, cu­ja corrente de cartas determina­ria sucessos e catástrofes.
Em “De olhos bem abertos” temos um garoto seqüestrado, confinado num buraco, que en­contra um interlocutor, o mais improvável de todos, mas que presencia o suplício do refém e torna-se sua única esperança de salvação. Finalmente, en­tre os destaques, temos o conto “Éden 4”, algo que não podia faltar num escritor que confessa sua tara por aléns da imagina­ção, e congêneres, e que todo leitor aficionado deseja reen­contrar, vez por outra, na litera­tura fantástica — o pastiche, hol­lywoodiano, segundo o autor, que reconta/revela a origem de um fenômeno ou lenda jamais desvendados. Alguns leitores ainda vão preferir o romantismo de “Rito de passagem”, ou o carnavales­co “Uma cerveja em três tem­pos”. Ou outros. Aqui não há cânone ou arsenal teórico a se­guir, a qualificar, e sim, como em todo bom livro de entreteni­mento, uma ligação muito pes­soal que se estabelece entre a história (e seus elementos) e o leitor. E difícil instaurar essa interlocução, ou, dito de manei­ra mais simples, é difícil contar bem uma história, sem firulas, sem exibir que ela esteja sendo contada. Éden 4 nos transporta a alguns momentos de leitura como esses, em que a consciên­cia do entorno, do quarto, do alarido familiar, desaparece. E, para quem gosta de ler, de fato, isso é o que determina tempo ganho, bem empregado: um bom livro.
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Luiz Antonio Aguiar é escritor

Contador de histórias


Flávio Carneiro
No Pais do Presente, Rocco, 2005

DUAS PALAVRAS PODEM NOS ajudar na definição de Éden 4: inventividade e simplicidade. Nos seus livros anteriores, Inca e Memórias de um diabo de garrafa, Alexandre Raposo já apostava na linguagem simples, sem arabescos de qualquer espécie ou ousadas experimentações formais, e num enredo incomum com personagens marcantes.
   Aqui, o autor percorre pela primeira vez as veredas da narrativa curta. Nos 15 contos que compõem o livro, Alexandre Raposo vai buscar em certa literatura não-canônica — o fantástico e a ficção-científica, por exemplo — as matrizes que, acrescidas de humor, ironia e algumas doses de ceticismo, acabam gerando uma escrita envolvente, com enredos que guardam sempre alguma surpresa para o final.
   Escrita, aliás, que não nega suas origens ao proporcionar ao leitor o prazer de ler histórias passadas em mundos gerados pela fantasia do autor, que ora deriva para o sonho, ora para a projeção do presente no futuro, ora — nos melhores momentos do livro — para o intervalo habitado por uma coisa e outra.
   Ao fantástico e à ficção científica, juntam-se ainda contos narrados feito fábulas, como “O Peixe-Rei”, ou a partir de certas misturas como “De olhos bem abertos”, no qual o fantástico (ou a fantasia, ou a paranormalidade) se alia a certo realismo urbano.
   Outros contos fazem lembrar os velhos contadores de “causos”, cuja força reside na oralidade, na capacidade de, literalmente, enredar, ou seja, trazer para dentro do enredo, seus hipnoptizados ouvintes. É o que acontece em “Justiça”, narrado por um pescador, entre várias doses de cachaça, ao amigo farmacêutico que acaba de passar por uma situação trágica.
   Como bom pescador, este também sabe contar histórias, e a que ele narra irá prender de tal forma o crédulo farmacêutico que nem as grosserias do dono do bar, doido para fechar as portas, irão tirá-lo da cadeira. E assim como o farmacêutico não consegue deixar seu interlocutor antes do final da história, também o leitor dificilmente, ou muito a contragosto, abandonará o conto sem saber de seu desfecho.
Sob a singeleza dos relatos, há por todo livro — disfarçada num e noutro personagem, neste ou naquele enredo — a constatação de que o ser humano é naturalmente um predador, fadado a exterminar seus semelhantes e o próprio planeta. E que a única saída é retornar ao início, começando tudo de novo, dando menos importância à “árvore do bem e do mal” e mais valor ao companherismo, à solidariedade.
   O modo como Alexandre Raposo deixa entrever essa visão um tanto amarga do que move e, em última instância, do que a humanidade é feita — essa sutileza com que o autor vai montando suas histórias — às vezes desanda um pouco, cedendo a certas explicitações que bem poderiam ser suprimidas. Em “Rito de passagem” e em “A caixa de Pandora”, por exemplo, há frases sobrando. O mesmo acontece em “O Peixe-Rei”, embora aqui, o fato de se tratar de uma fábula até justifique algo como uma “moral da história”.
   De qualquer forma, nesses contos e numa ou noutra passagem de outros, o exímio contador de histórias que é Alexandre Raposo se deixa levar, quem sabe, por certo desejo de imprimir ao texto algo que não lhe cabe ou, pelo menos, não de forma explícita: a transmissão de ensinamentos, mensagens.
    Não é o que acontece na maioria dos contos, é bom que se diga. No comovente “Ano-bom”, por exemplo, um tema que poderia ter virado clichê em mãos  menos laboriosas acaba se transformando numa bela e divertida história de amor, passada em 2042 e tendo como protagonista uma velha solitária, esquecida no prédio que vai ser implodido. Velha senhora que recebe a visita do falecido marido, sob o disfarce de um busca-pé (muito) falante, a salvá-la da morte iminente fugindo pela janela, ou pelo céu, ou quem sabe pela memória.
   Em “Uma escada para o céu”, temos novamente a fábula, numa reescrição da passagem bíblica da construção da Torre de Babel. Aqui, e não apenas por isso, o autor parece render homenagem a Murilo Rubião que, como o autor de Éden 4, sempre primou pelo insólito associado à clareza de linguagem. Murilo Rubião era obstinado recriador do texto bíblico, a partir do qual escreveu o conto “O edifício”, com base no episódio que também dá origem ao conto de Alexandre Raposo.
   No último conto do livro, aliás, o autor novamente recorre à Bíblia, numa ficção que engloba passado, presente e futuro e convida o leitor a conhecer, finalmente, um estranho planeta chamado Éden 4. Até chegar lá, porém, é preciso percorrer muitos outros lugares, reais e imaginários, que se espalham por cada uma das histórias, e se compete ao resenhista dar algum conselho ao leitor, o único que lhe ocorre é que apenas se deixe levar pelas páginas nessa longa viagem.
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Flávio Carneiro é crítico literário e professor de literatura na UERJ.   

Futuras memórias do diabo

Apolinário Ternes
para A NOTÍCIA SC

NÃO LEIO ROMANCES HÁ MUITO. E de autor brasileiro há mais tempo. Não sei se é a idade, fraqueza da vista, como dizia vó Licota, ou se a literatura perdeu o encanto. 
   Outro dia, contudo, Margareth, dona de livraria e conselheira de obras desconhecidas e autores mais ainda, sugeriu-me a leitura de um romance brasileiro de título mais do que insuspeito: Memórias de um diabo de garrafa, de Alexandre Raposo. Por obra do diabo, na livraria ainda, as primeiras palavras que li foram: " ... foi esconjurado nas ruínas do Coliseu romano, na madrugada de 31 de outubro de 1526, pelo escultor e ourives florentino Benvenuto Cellini..." Pronto, foi o que bastou para me interessar pelo diabo, esconjurado justo no dia de meu nascimento, séculos adiante. Para que maior cumplicidade do que essa para, enfim, conhecer as manhas e artimanhas dele, Lúcifer? O que tentou Jesus, comprou a alma de Fausto, eternizou Goethe e anda por aí, a tentar, bem sabemos, de chicote na mão e máscara nos olhinhos.
   Fui à leitura. Imensa surpresa. Trata-se de obra deliciosa, narrando em texto inebriante as aventuras e desventuras de um diabo de garrafa ao longo de 471 anos. Delicioso texto de autor desconhecido, sim, mas apresentado por Ivan Junqueira, que tem prestígio e talento reconhecido para endossar o que ele mesmo chama de plaisir du texte.
   Pois o diabo da garrafa é instigante personagem do mundo, "fluente em cento e doze línguas conhecidas" e autor de 321 livros sobre os mais variados assuntos. Alexandre Raposo, como disse, vem reabilitando o gosto pela literatura deste leitor cansado muito e desiludido mais ainda dos poderes do romance moderno.
   Esqueçamos, por minutos, as memórias de 471 anos do andarilho engarrafado (e lendo o romance, se verificará como isso foi possível e o que é impossível, diabos, para o diabo?) magistralmente concebidas por Alexandre Raposo. Adiantemo-lo no tempo. Imaginemos suas memórias na perspectiva de 471 anos, no futuro. Lá pelo ano 2470. Nesse exercício de imaginação, gastei tarde inteira. Saborosíssima tarde, pois terrível verdade, tudo que é do diabo é infernalmente gostoso. Como o pecado, cada vez mais fácil e cada vez melhor. O que me faz concluir que pecar é outra das circunstâncias da idade. Com o tempo, peca-se cada vez melhor.
   Imaginei cá com meus botões — ou com minhas escamas, diria o diabo — o que não se poderia dizer sobre nossos tempos de hoje. Assim, no frenesi do capitalismo, no fim da era industrial, no tempo da Internet, do celular, do fax e dos padres de Carnaval. O que não se poderá dizer, no futuro, do que não sabemos hoje. Por exemplo, sobre quando as nações, a partir dos primeiros anos do terceiro milênio, uma a uma, foram abandonando suas moedas próprias e adotando o dólar (nas Américas, o euro na própria e o iene na Ásia). Foram desativando suas forças armadas. Foram multiplicando as religiões, reduzindo os governos, emagrecendo a política e — a maior de todas as revoluções — redesenhando a democracia. Nada de político e de Congresso. Decisões diretas, via computador, da casa do contribuinte para a mesa do presidente. Voto imediato, direto, a prova de corrupção. E fui por aí, imaginando tudo o que não escreveria o diabo (da garrafa) de Alexandre Raposo num dia qualquer de outubro de 2470. Por um minuto, incrédulo, acreditei que a literatura sobreviveria até lá.
    Livraria ainda será negócio lucrativo. Margareth e Edla acreditam nisso. Mulheres de fé.
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Apolinário Ternes é jornalista e historiador

O diabo em Goiás

Gismair Martins Teixeira
para O POPULAR

O QUE HAVERIA DE COMUM ENTRE Benvenuto Cellini e Nicolo Paganini, além da incontestável genialidade com que marcaram época no campo das artes em áreas distintas? Na vida real, algumas poucas coisas. Na ficção, porém, há muito mais coincidência entre ambos que a fama do gênio.  
   Esta coincidência atende pelo nome de Giacomo Lorenzo Bembo, um simpático e nada assustador diabinho de garrafa que relata suas idas e vindas pelo mundo dos mortais em Memórias de um diabo de garrafa, uma bem-urdida ficção do jornalista e escritor Alexandre Raposo. 
    Esconjurado por Cellini em 1526, nas ruínas do Coliseu de Roma, Giacomo tem muito o que dizer. Afinal, não é qualquer um que conta mais de quatro séculos e meio de idade. Tempo este, aliás, bem aproveitado na leitura e meditação de obras-primas da humanidade, muitas das quais lidas no original e em primeira edição.

Tempo e espaço

Ao dar vez e voz a tão inusitada figura, Alexandre Raposo acertou golpe de mestre na estruturação ficcional de seu romance. De um só lance o autor soluciona — através da natureza mitológica inerente à personagem central — a questão espaço-temporal, além de privilegiar a verossimilhança na composição das demais personagens.
Se Machado de Assis põe um defunto a extrair ilações algo filosóficas do ramerrão cotidiano que caracterizou sua vida em Memórias Póstumas de Bras Cubas, em Memórias de um diabo de garrafa temos uma distensão no tempo e no espaço desse viés, com uma diferença significativa: Giacomo apresenta-se como uma espécie de alter ego do gênero humano, a testemunhar suas grandezas e misérias. Aliás, mais estas últimas que as primeiras.
Em ambas as memórias, a ironia sutil. Ou às vezes nem tanto. Como quando o diabinho de Raposo diz que ao longo desses séculos vem tentando aprender com os homens como ser um verdadeiro demônio, coisa que, segundo ele, "infelizmente ainda não aconteceu. Há tanto a aprender..."
Provando que é bom aluno, porém, Giacomo reserva para o final de Memórias... uma esdrúxula receita para prender um de seus pares, a quem interessar possa. Felizmente, o narrador de suas memórias e atual proprietário — dublê de Alladin — adverte ao leitor incauto que trata-se apenas de uma diabrura de seu pupilo.

Na pegada dos mestres

A exemplo de Machado de Assis, Guimarães Rosa legou à posteridade, em seu Grande Sertão: Veredas, material para fartas especulações. E o fez com a sutileza dos grandes mestres, o que abre um leque de possibilidades à exegese literária. Assim, como se especula quanto à fidelidade da personagem Capitu, da mesma forma paira a dúvida quanto à concretização do pacto de Riobaldo com o demônio. Afinal, o diabo apareceu ou não na encruzilhada do caminho?
Sem a pretensão de trazer à baila um novo enigma, Alexandre Raposo aproveita-se em Memórias... de determinadas especificidades temáticas das obras pinçadas ao universo machadiano e rosiano para retomá-las por uma perspectiva diferente. É assim que ele aproveita para deixar em sua obra a idéia de um exorcismo de natureza cultural. A primeira indicação disso se dá quando Khosr — outro diabo de garrafa multimilenar, espécie de mentor do diabinho de Raposo — desaparece misteriosamente na Biblioteca do Vaticano quando Giacomo abre um livro sobre ciência, publicado pelo então pouco conhecido Isaac Newton, quando o pobre diabo por lá esteve em suas andanças.
É como se Khosr recebesse golpe fatal, a partir do momento em que o homem descobre a lei da gravidade. É a ciência sobrepondo-se à superstição. Ou ao mito. A segunda e definitiva indicação se dá quando o diabinho encerra suas memórias e desaparece também de forma misteriosa, deixando o seu proprietário e filhos inconsoláveis.
De passagem, ainda, Raposo oferece em seu romance curiosas abordagens de algumas matrizes culturais presentes na formação brasileira, materializadas em algumas personagens. O que não deixa de ser uma breve reflexão nestes 500 anos de Brasil — Giacomo tem quase isso de idade.
Portanto, a tarefa — a princípio perigosa — de usar uma dupla referência intertextual de Machado e Guimarães é levada a cabo por Alexandre Raposo com inegável talento literário, a se expressar no estilo e na densidade do conteúdo de Memórias....
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Gismair Martins é mestre em Letras pela UFG.