quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Futuras memórias do diabo

Apolinário Ternes
para A NOTÍCIA SC

NÃO LEIO ROMANCES HÁ MUITO. E de autor brasileiro há mais tempo. Não sei se é a idade, fraqueza da vista, como dizia vó Licota, ou se a literatura perdeu o encanto. 
   Outro dia, contudo, Margareth, dona de livraria e conselheira de obras desconhecidas e autores mais ainda, sugeriu-me a leitura de um romance brasileiro de título mais do que insuspeito: Memórias de um diabo de garrafa, de Alexandre Raposo. Por obra do diabo, na livraria ainda, as primeiras palavras que li foram: " ... foi esconjurado nas ruínas do Coliseu romano, na madrugada de 31 de outubro de 1526, pelo escultor e ourives florentino Benvenuto Cellini..." Pronto, foi o que bastou para me interessar pelo diabo, esconjurado justo no dia de meu nascimento, séculos adiante. Para que maior cumplicidade do que essa para, enfim, conhecer as manhas e artimanhas dele, Lúcifer? O que tentou Jesus, comprou a alma de Fausto, eternizou Goethe e anda por aí, a tentar, bem sabemos, de chicote na mão e máscara nos olhinhos.
   Fui à leitura. Imensa surpresa. Trata-se de obra deliciosa, narrando em texto inebriante as aventuras e desventuras de um diabo de garrafa ao longo de 471 anos. Delicioso texto de autor desconhecido, sim, mas apresentado por Ivan Junqueira, que tem prestígio e talento reconhecido para endossar o que ele mesmo chama de plaisir du texte.
   Pois o diabo da garrafa é instigante personagem do mundo, "fluente em cento e doze línguas conhecidas" e autor de 321 livros sobre os mais variados assuntos. Alexandre Raposo, como disse, vem reabilitando o gosto pela literatura deste leitor cansado muito e desiludido mais ainda dos poderes do romance moderno.
   Esqueçamos, por minutos, as memórias de 471 anos do andarilho engarrafado (e lendo o romance, se verificará como isso foi possível e o que é impossível, diabos, para o diabo?) magistralmente concebidas por Alexandre Raposo. Adiantemo-lo no tempo. Imaginemos suas memórias na perspectiva de 471 anos, no futuro. Lá pelo ano 2470. Nesse exercício de imaginação, gastei tarde inteira. Saborosíssima tarde, pois terrível verdade, tudo que é do diabo é infernalmente gostoso. Como o pecado, cada vez mais fácil e cada vez melhor. O que me faz concluir que pecar é outra das circunstâncias da idade. Com o tempo, peca-se cada vez melhor.
   Imaginei cá com meus botões — ou com minhas escamas, diria o diabo — o que não se poderia dizer sobre nossos tempos de hoje. Assim, no frenesi do capitalismo, no fim da era industrial, no tempo da Internet, do celular, do fax e dos padres de Carnaval. O que não se poderá dizer, no futuro, do que não sabemos hoje. Por exemplo, sobre quando as nações, a partir dos primeiros anos do terceiro milênio, uma a uma, foram abandonando suas moedas próprias e adotando o dólar (nas Américas, o euro na própria e o iene na Ásia). Foram desativando suas forças armadas. Foram multiplicando as religiões, reduzindo os governos, emagrecendo a política e — a maior de todas as revoluções — redesenhando a democracia. Nada de político e de Congresso. Decisões diretas, via computador, da casa do contribuinte para a mesa do presidente. Voto imediato, direto, a prova de corrupção. E fui por aí, imaginando tudo o que não escreveria o diabo (da garrafa) de Alexandre Raposo num dia qualquer de outubro de 2470. Por um minuto, incrédulo, acreditei que a literatura sobreviveria até lá.
    Livraria ainda será negócio lucrativo. Margareth e Edla acreditam nisso. Mulheres de fé.
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Apolinário Ternes é jornalista e historiador

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