quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Graça e ironia

Por Ivan junqueira

A QUEM PODERIA OCORRER, NOS extertores do segundo milênio, contar as memórias de um pobre diabo de garrafa chamado Giacomo Lorenzo Bembo, “fluente em cento e doze línguas conhecidas” e outras tantas que os paleógrafos “não conseguiram classificar”, que foi exconjurado nas ruínas do Coliseu romano, na madrugada de 31 de outubro de 1526, pelo escultor e ourives florentino Benvenuto Cellini? Pois a insólita e desconcertante idéia aflorou na imaginação do escritor brasileiro Alexandre Raposo, ganhador de uma das três bolsas que a Biblioteca Nacional instituiu em fins de 1997 para romances em andamento.
   Pois esse fabuloso diabo de garrafa, com sua fina ironia e sua descomunal cultura em vários ramos do saber, passou de mão em mão — além das de Cellini,  pelas do embarcadiço português Nuno da Silva, do frade dominicano Soares Gaillán, do compositor e virtuose italiano Niccolò Paganini e do estudante de arqueologia brasileiro José Afonso Gonçalves — até tornar-se propriedade da família a que pertence quem lhe narra estas esticadas memórias de quase quinhentos anos.
   O que de pronto encanta e surpreende em Memórias de um diabo de garrafa é, acima de tudo, o absoluto domínio que revela o autor não só de nossa língua e de suas mais caras tradições, mas também da agílima linguagem ficcional de que se vale. Essas memórias seculares nos são contadas com graça e ironia inexcedíveis, fazendo assim de sua leitura um deleite a que decerto não está habituado o leitor brasileiro.
   As mais bizarras peripécias da espantosa criatura — não fora ele um vetusto diabo de garrafa — nos aliciam com uma  estranha variedade mercê do estilo culto e elegante de que se serve Raposo, o que galvaniza o leitor e fá-lo não renunciar por um só instante àquilo que eu diria aqui constituir mais do que aquele barthesiano “plaisir du texte”, a degustação de um vinho velho, raro e inebriante. Não cumpre antecipar nestas orelhas, as quais o leitor deve fazer ouvido moucos, quaisquer daquelas peripécias, já que estão todas como que visceralmente entranhadas na arte narrativa de quem as relata. E esse mesmo leitor, se sábio for, que vá a texto já e já, e não o largue da primeira até a última linha. Se assim o fizer, entenderá do que lhe falo. E por que aqui o exalto.

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