terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Uma viagem de mais de dois mil anos acompanhando a saga de grandes civilizações. A epopéia de homens, demônios e santos, lutando por seus sonhos e ideais. Três romances históricos que o levarão em uma longa jornada através do espaço e do tempo, percorrendo mundos primitivos, misteriosos, repletos de aventura e magia. 

HÁ EM MINHA CASA uma passagem secreta, tão secreta e tão engenhosamente projetada que vez por outra me esqueço de onde está e vejo-me em dificuldades para voltar a encontrá-la. Quem a criou sabia exatamente o que estava fazendo. Nada de espelhos, paredes corrediças, nada de fundos falsos ou alçapões de mágico de circo. Principalmente, nada de sésamos ou encantamentos já que tudo isso se gasta com o tempo e evidentemente a passagem foi feita para atravessar as eras e sobreviver à ruína dos minérios. 
  Descobri-a por acaso, enquanto tentava alcançar um cachimbo caído por trás de uma cômoda. Estava eu ali deitado, rosto rente ao chão, braço enfiado debaixo do móvel, quando, inadvertidamente, dei com a mágica revelada: o insólito desvão na parede oposta, tão óbvio e, no entanto, somente perceptível do lugar incomum onde eu então me encontrava. 
   Ao me aproximar, novas surpresas. O desvão era bem mais amplo do que parecia a princípio, permitindo a passagem de duas pessoas, lado a lado. Parecia-me impossível que tivesse estado ali todo o tempo sem que eu jamais o tivesse notado. Contudo, bastava-me dar um passo atrás para que desaparecesse de vista, subitamente substituído por uma sólida parede de alvenaria. O truque era simples, quase óbvio. Uma ilusão de ótica ordinária. A passagem permanecia aberta todo o tempo. Entretanto, para olhos leigos, resultava intransponível como uma muralha. 
   O corredor era estreito, escuro, mas se alargava pouco a pouco até finalmente desembocar em uma ampla torre cilíndrica, com seus vinte e poucos metros de altura, ocupada por estantes atopetadas de livros que subiam em espirais pelas paredes até quase tocarem a claraboia. 
   Não era biblioteca que facilitasse o acesso às obras ali preservadas. Não havia escadas e nem passarelas entre os muitos níveis da torre. Tampouco havia mesas de leitura, escritórios ou escaninhos, o que me levou a pensar que aquela era uma biblioteca feita para leitores alados, capazes de alcançar os livros das prateleiras mais altas e pairar no ar durante a leitura. Ao meu alcance, porém, estavam os livros das prateleiras mais baixas. E apenas esses seriam suficientes para me ocupar pelo resto da vida. Eram livros esplendidamente encadernados e impressos sobre papel tão imaculadamente branco que dava pena tocá-lo com os olhos. Já o acabamento gráfico era primoroso, capaz de alcançar o improvável meio-termo entre a arte dos copistas-iluministas e a precisão da editoração eletrônica. 
   Havia, porém, um terrível inconveniente, um empecilho evidentemente intransponível. E é de se imaginar o meu desencanto ao perceber que todos aqueles livros haviam sido escritos em um idioma que me era completamente estranho, com caracteres misteriosos, tão belos quanto ininteligíveis. 
   Estava eu ali não fazia um quarto de hora, revirando as prateleiras na esperança de encontrar alguma obra que permitisse leitura, quando me dei conta do rumor. Quase imperceptível a princípio, logo ganhou força, revelando-se finalmente como um murmúrio de vozes, muitas vozes, como se houvesse uma multidão ressabiada escondida por trás das estantes — possivelmente os próprios donos da biblioteca, mobilizando-se para expulsar o intruso. Foi uma ilusão passageira. O medo faz coisas tremendas com a imaginação das pessoas. E bastou-me pensar um pouco para concluir que vozes tão agradáveis, tão suaves e amistosas, jamais poderiam querer mal a alguém, intruso que fosse. As vozes continuaram, mais altas, mais nítidas, cada vez mais doces e virtuosas — já sem o cuidado de serem discretas — de tal forma que logo percebi que o que de fato ocorria era que os livros haviam se dado conta de minha presença; e se preparavam para cantar para mim. 

Desde então tenho voltado frequentemente à biblioteca. E toda vez a rotina se repete. Tão logo me posiciono com um livro no centro da torre, os outros se põem a cantar e, enquanto cantam, me é dada a incrível faculdade de compreender o idioma em que são escritos. Mais que isso, sou capaz de presenciar as histórias que leio como se estivessem ocorrendo em tempo presente, bem diante de meus olhos. Cheiros, gostos, imagens, tudo me é acessível nesses momentos mágicos em que desfruto de textos que, em realidade, são memórias em estado bruto, codificadas, armazenadas e fielmente reproduzidas sabe-se lá por que incrível técnica ou sortilégio. 
   Certamente o organizador da coleção era alguém obcecado não apenas por obras espetaculares mas também inéditas. Em toda a vida jamais ouvira falar dos livros que ali encontrei, embora alguns me parecessem verdadeiras obras primas do gênio literário. Por maior que fosse a tentação, jamais ousei trazer comigo um dos volumes da torre. Não ficaria surpreso se a passagem se fechasse para sempre tão logo eu dela emergisse portando, em vez do livro, um maço de aparas de papel vagabundo. Tenho certeza de que a mágica não funcionaria fora da biblioteca, que já provou ser uma máquina perfeitamente calibrada e da qual não seria aconselhável retirar qualquer peça, miúda que fosse. Vez por outra penso em reproduzir de memória algumas das coisas lidas naqueles livros. Contudo, assim como os sonhos, as histórias que leio na biblioteca perdem muito do encanto quando transpostas para esta nossa realidade, e desisto da empreitada antes mesmo de ligar o computador. 
   Recentemente, porém, caíram-me em mãos três obras curiosíssimas, sob todos os aspectos merecedoras de maior determinação de minha parte. Não são livros capitais do acervo, estão longe de serem os mais volumosos e chegam a destoar de seus companheiros de estante dada a despretensão da linguagem. São, entretanto, aventuras capazes de deliciar o leitor moderno com seus pequenos escândalos, controvérsias e heresias, de modo que não vi alternativa senão arregaçar as mangas e resgatá-las do inexplicável anonimato que as cercava havia tanto tempo.

(Continua...)